Abraão, Sodoma, Gomorra e os limites no alcançável – Lições bíblicas para a arte da negociação
No livro de Gênesis, onde está relatada a criação dos céus, da terra, do homem, da mulher e dos povos, há uma interessante história sobre um momento em que Deus resolve destruir as cidades de Sodoma e de Gomorra porque teriam “atingido a medida da iniquidade”. Apesar de não estar claro nas Escrituras o que é exatamente isso, podemos supor, partindo de uma forma de pensar judaica, como algo semelhante a uma condição em que os pecados de uma pessoa ou um povo superam seus méritos, fazendo com que sejam aplicadas as consequências previstas para quem ofende as leis de divinas.
Na ocasião, pela amizade e consideração com Abraão, e talvez pelo fato de seu sobrinho Ló residir naquela região, Deus resolve compartilhar o que estava para fazer, isto é, que iria destruir Sodoma e Gomorra.
Nesse momento começa uma negociação que, a meu ver, é bastante ousada: a de uma mera criatura mortal com o Todo-Poderoso.
Abraão começa a negociação firmando-a num princípio de justiça, como que para testar se havia chances de a decisão divina ser revista:
– Um Deus Justo e Todo-Poderoso mataria pessoas justas junto com pessoas injustas?
– Não!
Pronto, está posta a base posta para as tratativas. A partir de então Abraão começa usando números expressivos em que a destruição de Sodoma e de Gomorra, a seus olhos, seria flagrante injustiça e questiona se Deus pouparia as cidades caso nelas vivessem pelo menos cinquenta pessoas justas e apela: longe de ti cometer a injustiça de matar justo com injusto.
Deus concorda…
Pedindo desculpa por já ter sido bem ousado em falar assim com o Eterno, Abraão avança e repete o mesmo argumento, mas reduzindo a quantidade de justos necessários para salvar a cidade.
– Quarenta?
– Sim.
– Trinta?
– Sim.
– Vinte?
– Sim.
– Dez?
– Sim.
Acho empolgante essa narrativa, sugiro que leia direto na Bíblia, no livro de Gênesis, capítulo 18 a partir do versículo 16.
Entretanto, infelizmente, a cidade não tinha míseras dez pessoas justas e quando os anjos do Senhor lá foram, encontraram apenas Ló como digno de ser salvo. Então mandaram recolher sua família e fugirem, sem olhar para trás. É nesse momento, inclusive, que a esposa de Ló, talvez saudosa da vida que tinha, olha para trás durante a fuga e é transformada numa coluna de sal. Por fim, a cidade é destruída.
Que lição podemos tirar da negociação de Abraão com Deus?
Na minha concepção Abraão foi incrivelmente digno e habilidoso, por mais que não tenha conseguido salvar a cidade, isso não ocorreu por falta esforço ou tática na negociação, mas porque realmente sua “cliente” não tinha condições mínimas para ser vitoriosa. Há estimativa de todo tipo para a quantidade de habitantes dessa região, e algumas apontam que em Sodoma e Gomorra viviam no mínimo dez mil pessoas, e outras indicam média entre 45 e 60 mil pessoas. Mesmo assim, não havia pelo menos dez pessoas dignas? Entre, digamos 50 mil pessoas, não havia dez pessoas que evitavam fazer o mal? Frustrante. Abraão se empenhou e fez o seu melhor, mas seu “cliente” não colaborou.
Trazendo para o cotidiano, isso muitas vezes se mostra real.
É o cliente que quer ganhar um processo sem ter as provas documentais ou testemunhais necessárias. É aquele que quer negociar e comprar uma propriedade sem ter uma proposta minimamente adequada para o mercado. É quem pretende negociar melhores condições de trabalho sem ter performance que efetivamente justifique. É o aluno que espera receber notas sem ter apresentado respostas certas ou feito um trabalho adequado.
Em outras palavras, são pessoas que gostam de negociar para ter o que querem, entretanto, não possuem como moeda de troca algo proporcional ao que almejam conseguir. Então, considerando que para uma negociação ser concluída com um acordo é necessário que para ambas as partes haja um resultado satisfatório, se um dos lados não tem algo bom o suficiente para oferecer, ou forçará uma situação injusta e apelativa ou deverá ser ardiloso utilizando estratagemas e artifícios, mas que, infelizmente, não conduzirão a uma situação de ganha-ganha e, então, poderá quebrar o princípio basilar do equilíbrio contratual. No mundo atual, até possibilitando uma judicialização para revisão.
Apesar desse alerta, não considero errado tentar negociar, pois nunca sabemos qual a expectativa de quem está do outro lado. Já vi negócios incríveis e quase inacreditáveis serem fechados, em condições bastante diferentes daquelas propostas no início das tratativas, mas o que precisa ser calibrada é a expectativa.
Ao ingressar em qualquer negociação, deve-se ter uma concepção realista sobre o potencial da melhor proposta que poderá fazer a fim de evitar frustrações e para saber parar quando passa para a importunação.
Abraão parou em “dez justos”. Será que poderia ter avançado para “um justo”? Seria desproporcional? Seria aceita a proposta? Sinceramente, eu acho que não seria aceita, pois quando Deus determinou a destruição, já sabia quantos justos viviam ou não na cidade e até que ponto poderia ceder sem voltar atrás na decisão tomada, contudo, a negociação serviu para, entre outras coisas, Abraão perceber que não estava diante de um Deus vingativo, sanguinário ou autoritário, mas bem pelo contrário, justo e cumpridor de promete. Mesmo assim, eu gostaria muito que Abraão tivesse feito a proposta de salvar a cidade se houvesse pelo menos um justo vivendo nela. Gostaria de ouvir a resposta. Enfim, essa é mais uma que deixarei para perguntar logo mais, no Mundo Vindouro, se me for dado esse privilégio.
Dessa história, podemos sintetizar algumas lições. Iniciar estabelecendo as bases da negociação e por mais que parece difícil, vá testando os limites, sentindo o terreno, tentando descobrir até que ponto o outro lado está disposto a ceder, apelando sempre para sentimentos nobres e verdadeiros. Agindo assim, é possível conseguir bons acordos se ambos estiverem com sincero desejo de chegar a algo justo e razoável.